Wild Cards é um
colossal universo compartilhado, composto por 22 livros e capitaneado por
George R. R. Martin. A série é conduzida por uma ampla equipe de autores,
alguns deles com destaque na literatura de gênero, como Chris Claremont,
Melinda Snodgrass e Lewis Shiner. Comumente chamada de “romance mosaico”, Wild Cards tem uma estrutura narrativa
peculiar: compõe-se de contos e romances algo independentes que, quando lidos
em conjunto, formam um quadro maior.
A estruturação, embora atípica, não é uma novidade plena.
Na literatura, pode ser traçado um paralelo com a narrativa epistolar, aquela
composta pelas cartas trocadas entre os personagens (Drácula, de Bram Stoker, e Ligações
Perigosas, de Choderlos de Laclos, são exemplos). A cada novo segmento há
uma mudança no foco narrativo, resultando em um enredo que, visto segundo o
ponto de vista de cada personagem, se completa também como um mosaico. Da
variação do foco resulta uma história que na verdade é várias histórias. Como
em Wild Cards.
A diferença que se coloca entre um caso e outro é bem
evidente: na série de livros organizada por Martin a narrativa predominante é
em terceira pessoa; na narrativa epistolar, em primeira. Outro ponto que cabe
frisar é: as obras epistolares nem sempre apresentam a variação no foco
narrativo. Por exemplo: Os Sofrimentos do
Jovem Werther, de Goethe, dá a conhecer os escritos do próprio
protagonista, mas não do destinatário.
Contudo, o paralelo com a narrativa epistolar talvez não
seja o mais imediato. Há outro ainda mais significativo: as ongoing series (as mensais) de
super-heróis cujas normas Wild Cards
explora e distorce. Como se dá na Marvel e na DC, para ficar nos exemplos mais
conhecidos, o título mensal de um personagem dessas editoras se relaciona, às
vezes intensamente, com os títulos dos outros. Assim, as narrativas existem em
interação, constituindo um universo ficcional amplo, compartilhado.
Também podem ser traçadas relações muito estreitas com
uma HQ autocontida, a minissérie em 12 partes Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons. Tanto em Wild Cards quanto em Watchmen, há a fragmentação do foco
narrativo, há o mosaico, há a tentativa de cunhar um universo de super-heróis
que coloca em xeque os parâmetros do gênero, esgarçando-os. No universo de
super-heróis tradicional não são exploradas as decorrências culturais, sociais
e históricas provocadas pela presença de pessoas com superpoderes – não vemos,
por exemplo, a interferência dos supers em guerras reais ou na política interna.
Em Wild Cards e Watchmen, há essa preocupação – isso os aproxima mais da ficção
científica, na tendência do gênero de abordar o impacto dos nova (as “novidades estranhas” da FC, de
acordo com a conceituação de Darko Suvin) na vida do homem.
Os contos do primeiro volume de Wild Cards tratam da detonação de uma bomba alienígena em Nova
York, nos anos 40, e das consequências nos decênios que seguem, chegando até o
princípio dos anos 80. A bomba liberta sobre a cidade o vírus carta selvagem,
que é capaz de matar, provocar deformações ou gerar superpoderes nos afetados.
Os deformados são chamados de curingas e fadados a viver em uma periferia
assolada pela criminalidade. Causam repulsa ao resto da população e se vêem
privados do direito de ir e vir. Os agraciados com superpoderes são chamados de
ases e se tornam celebridades ou peões nas mãos do governo norte-americano. Apenas
alguns dos ases, como o carismático Tartaruga, escapam desse contexto de exploração
midiática ou governamental, configurando-se em sintonia com os super-heróis
tradicionais.
Trata-se de um alegoria do preconceito racial, conforme
sua conformação norte-americana. O Bairro dos Curingas, de acordo com essa
leitura, equivale às periferias com concentração de negros e/ou imigrantes
latinos. Recebem pouca atenção do poder público, têm altos índices de
criminalidade e são tomados como indesejáveis pelos dominantes WASPs (brancos,
anglo-saxônicos e protestantes). Wild
Cards volta um olhar significativo, despido de condescendência, à minoria
desprovida de direitos: não a caracteriza meramente como vítima, o que
conduziria ao paternalismo, mas como composta por pessoas que conseguem
enxergar e articular criticamente sua condição de excluídos.
No Brasil, dois derivados de Wild Cards foram publicados nos anos 90: uma excelente minissérie
em quadrinhos que adapta segmentos das narrativas literárias; e as páginas
anexas do suplemento de RPG GURPS Supers,
constituídas de descrições do cenário e fichas dos personagens da série. Nesses
derivados, o brasileiro encontrou uma instigante amostra dos livros que, não
fosse o sucesso de Game of Thrones,
de Martin, talvez não fossem publicados por aqui.
A Editora LeYa, assim, preenche uma lacuna muito incômoda
para aqueles que tiveram contato com os quadrinhos ou com o suplemento Supers. É um alívio poder finalmente
conferir a qualidade da série em uma edição cuidadosa e visualmente agradável. A
tradução, a despeito de um ou outro deslize, não compromete e o texto flui
bastante bem em português. Raphael Draccon, o curador da série no Brasil, fez
um trabalho de organização muito eficiente que deve se manter nos próximos 21
volumes. Durante os próximos anos (serão publicados três livros anualmente),
será um prazer finalmente conhecer o mundo de Wild Cards em toda a sua complexidade e riqueza.