Kilgore
Trout, personagem criado pelo iconoclástico Kurt Vonnegut (1922 - 2007), é um exemplo
perfeito de artista posto às margens do sistema literário por questões que
escapam ao seu controle. Não à toa, é um escritor de ficção científica. Para os
que estão a par da produção brasileira vinculada ao gênero, difícil não traçar
paralelos com Trout.
A
fortuna crítica de Vonnegut tende a apontar Trout como um alter-ego do autor.
Faz sentido, desde que se esqueça o ranço que vem junto com a sempre mal-fadada
crítica das intenções – quer dizer, a crítica que se ampara em entrevistas e
declarações do autor para traçar considerações sobre a obra. Isso porque Vonnegut,
ao contrário de Trout, nunca se referiu à própria produção segundo o rótulo “ficção
científica”.
Cabe
mencionar que os primeiros trabalhos de Vonnegut podem ser
plenamente chamados de ficção científica, já que lidam de forma direta com as
convenções do gênero. O aspecto especulativo diminui no decorrer da obra
literária de Vonnegut, mas a FC continua a se fazer presente, de uma forma ou
de outra.
O
que Kilgore Trout põe em cena não se limita à ironia com que um escritor de
ficção científica (Vonnegut) retrata seu próprio ofício; estende-se para o
gênero como um todo, e mais ainda: para todos aqueles que são excluídos e
postos à margem. Kilgore, com todos seus exageros, alegoriza a própria marginalização
da ficção científica no sistema literário de valores.
No
romance Matadouro 5, de Vonnegut, nos é dado saber que Trout “não
pensava em si mesmo como escritor pelo simples motivo que o mundo não havia
permitido que ele pensasse em si mesmo desta forma”. Já em Café-da-Manhã dos
Campeões, é apontado que, mesmo tendo escrito cento e dezessete romances e
dois mil contos, nenhum editor respeitável jamais ouvira falar dele. O
personagem é mais do que marginalizado – é invisível para o mundo em que vive.
Tão obscura é sua obra literária que ele mesmo precisa garimpar para encontrar
seus próprios romances, e raramente a procura é bem-sucedida.
O
garimpo se dá em lojas de artigos pornográficos, posto que uma editora de
revistas de sexo explícito publica os romances de Trout para “dar volume” às
edições de fotos de sexo e nudez. Para Kilgore, e aqui temos um exemplo do
humor de Vonnegut, “desconcertantes eram as ilustrações escolhidas por seus
editores, que não tinham nada a ver com as histórias”. Mesmo num ambiente tão
marginalizado e mal-visto, Trout não encontra lugar – seus livros estão
destinados a juntar poeira nas lojas de produtos pornográficos.
Os
brasileiros que de uma forma ou de outra estão em contato com a realidade da
ficção científica no País podem compreender muito bem porque Vonnegut escolheu
um autor do gênero para retratar o perfeito outsider intelectual.
Na
ácida crítica de Kurt Vonnegut, que uso é encontrado para os livros de Kilgore
Trout? O personagem, no romance Café-da-manhã dos campeões, em dado
momento pega carona com um caminhoneiro que fora preso na cidade de
Libertyville:
- Bom – continuou o caminhoneiro -, tinham tantos
livros em Libertyville que usavam livros como papel higiênico na cadeia. Como
eles me pegaram no final de tarde de sexta-feira, a minha audiência só poderia
ser na segunda-feira. Assim, fiquei lá no calabouço por dois dias, com nada a
fazer além de ler meu papel higiênico. Ainda lembro das histórias que li.
- Hum – fez Trout.
- Aquela foi a última história que li – disse o
caminhoneiro. – Meu Deus... isso deve fazer quinze anos. A história era sobre
outro planeta. Era uma história maluca. Eles tinham museus cheios de pinturas
por todo lado, e o governo usava uma espécie de roleta para decidir o que botar
nos museus e o que jogar fora.
De repente, Kilgore Trout ficou zonzo por causa do dejà
vu. O caminhoneiro fazendo ele lembrar do início de um livro em que ele
não pensava fazia anos. O papel higiênico do caminhoneiro em Libertyville, na
Geórgia, era O crupiê-chefe de Bagnialto ou A obra-prima do ano,
de Kilgore Trout.
Não
é preciso esforço para relacionar o papel higiênico do caminhoneiro com o
cânone aleatório do planeta Bagnialto. Os livros de Trout são os que não
tiveram sorte na roleta, e que foram jogados fora por critérios críticos aleatórios
e preconceituosos.
Uma
situação pela qual Kilgore passa é particularmente ilustrativa. Em Matadouro
5, o personagem diz, quando perguntado se determinada história sua tinha
realmente acontecido: “Se eu escrevesse uma história que não aconteceu de
verdade e tentasse vendê-la, iria preso. Isso é fraude. Num exemplo de
como o romance de Vonnegut parece apontar para como a atrofia imaginativa do
senso-comum impede a compreensão do contexto em que se encaixa a ficção
científica, a interlocutora de Trout acredita na brincadeira.
No Brasil,
particularmente, a própria constituição do cânone privilegia obras de cunho
dito realista, o que alguns entendem como uma sugestão para que a FC seja taxada
como má literatura. Não é necessário reclamar a inclusão do gênero no cânone;
bastaria que ele fosse julgado pelos traços que lhe são particulares. O mero
uso de suporte crítico inadequado configura preconceito (às vezes inadvertido),
na medida em que leva a conclusões deslocadas. Em outras palavras: se o texto
não é canônico e se constitui mesmo em certo desarranjo com as obras canônicas,
como julgá-lo desfavoravelmente por não cumprir os requisitos do cânone?
Vonnegut
era também um artista plástico, e desenhou Trout diversas vezes. Vejamos como o
autor representou o marginalizado escritor:
Chama
a atenção que uma criatura marginalizada como Kilgore Trout possua tantos
olhos. Na visão está o privilégio do personagem: enquanto a auto-intitulada
alta cultura não enxerga o nicho em que Trout está inserido, nada impede que
ele veja tanto outros marginalizados quanto o próprio centro que o ignora. O
diálogo entre diferentes nichos culturais, tão caro à ficção científica, só se
torna possível por meio da reorganização artística (consciente ou inconsciente)
do que cada um dos olhos de Trout capta. É na visão multifacetada que reside o
trunfo do personagem.
Estendamos
a observação para a própria ficção científica. Nutrindo-se de
diferentes lugares e atenta a eles, pode ser invisível, mas enxerga bem.