O
horror pode ser compreendido como um gênero que, tematicamente, põe em cena
conflitos entre o velho e o novo, entre o conservador e o dinâmico, entre as
gerações passadas e as atuais ou vindouras. Trata-se de um ponto constitutivo
mas não condicional do gênero – ou seja, pode ajudar a constituir determinada
obra mas não é condição para que um filme seja enquadrado ou não no gênero; o
elemento pode estar ausente. O topos
da assombração, dos mortos incorpóreos que por um motivo ou outro voltam para
atormentar os vivos, é dos exemplos mais claros. Das raízes góticas à
reinvenção promovida por Stephen King em O
Iluminado e Christine, temos
diante de nós vivos que têm suas energias minadas por seres (ou, em King, impressões deixadas por seres antes
viventes) cujo tempo já passou, e que não têm mais o direito de caminhar sobre
a Terra. São forças, nesse sentido, intrinsecamente retrógradas e avessas ao
dinamismo que acompanha a vida.
Isso
também se observa na frequente contraposição entre inocente e conspurcado, puro
e impuro. Tomemos dois exemplos de períodos afastados. Em Drácula (1897), de Bram Stoker, o secular personagem título emerge de seu
atrasado território para manchar a pureza de mocinhas incautas; em Hellraiser (1986), dirigido por Clive Barker, o tio depravado da protagonista é o
responsável pela presentificação de forças do além imorais e desagregadoras.
(No romance do qual o filme é uma adaptação, de autoria do próprio Barker, a protagonista
não é aparentada ao depravado Frank, mas a diferença entre suas idades também é
grande.) Ora, não é exagero dizer que Drácula e Frank são velhos pervertidos
que ferem a pureza dos jovens – ou de qualquer outro que cometa a juvenil
inocência de lhes dar espaço para agir.
Para
falar desse ponto, A Hora do Pesadelo
(A Nightmare on Elm Street, 1984), de
Wes Craven, é paradigmático. Freddy Krueger é um homem da geração pregressa à
dos protagonistas, queimado vivo pelo povo de Springwood depois de ter matado
crianças da cidade. O personagem retorna nos pesadelos dos jovens de
Springwood, como algo recalcado pelos pais que volta para atormentar os filhos.
Alegoriza-se, assim, os erros e as frustrações dos progenitores que são
repassados inadvertidamente à prole. A negação não se sustenta, e o que foi
recalcado há de voltar – a carga freudiana do enredo salta aos olhos.
Acerca do
contraponto entre inocente (jovem) e conspurcado/conspurcador (velho), cabe
mencionar o figurino patentemente demodé
de Freddy Krueger. Ao contrário dos jovens protagonistas, com roupas e cortes
de cabelo afins à moda dos anos 80, Krueger usa calças puídas, um suéter
listrado de vermelho e verde e um chapéu de modelo ultrapassado. Já na
vestimenta ele é algo vindo de um passado superado, que à primeira vista não
tem mais espaço.
A inclinação de
Freddy Krueger à pedofilia (por definição, a conspurcação de uma criança
inocente por obra de um adulto) não é explicitada, mas fortemente implícita. O
comportamento lascivo do personagem sugere que ele fazia mais do que matar as
crianças da cidade. Toda a expressão corporal de Robert Englund quando se
aproxima das vítimas ajuda a cunhar essa lascividade. Além disso, a clássica
cena em que Krueger lambe a boca da protagonista Nancy Thompson através do
telefone indica a carga sexual perturbadora que o personagem carrega.
The Abomination (1986) é um longa
metragem filmado em vídeo e muito timidamente lançado apenas nas locadoras
norte americanas. A direção e o roteiro são de Bret McCornick, que dirigiu mais
de uma dezena de filmes baratos de horror e ficção científica e hoje ainda atua
como produtor. Trata-se de um gore de
baixíssimo orçamento que, como é comum em produções do tipo, aposta em soluções
criativas para driblar a falta de recursos. Mesmo levando isso em conta, há
problemas que poderiam ter sido evitados.
O primeiro deles:
o filme começa com uma montagem de suas cenas mais violentas e impactantes, o
que atrapalha em muito o andamento da narrativa; a transformação pela qual vai
passar o protagonista, bem como o agente dela, são entregados de pronto já nos
primeiros minutos, antes que o enredo propriamente dito comece. Outro problema:
talvez para preencher lacunas nas cenas que careciam de áudio, uma redundante
narração em off foi sobreposta. Em
poucos momentos a narração vai além de explicitar o que já é óbvio, e o recurso
irrita logo de início. Ainda que o resultado final do longa seja positivo, a
falta de dinheiro típica do cinema independente (e underground, o que nem sempre é a mesma coisa) precisa ser levada
em conta para que as deficiências técnicas não entrem no caminho do trabalho
valorativo.
O
protagonista, um jovem correto e cumpridor dos deveres que lhe são atribuídos,
se incomoda com o fervor religioso de sua velha e cancerosa mãe. Fanática,
desenvolveu uma admiração desmedida por um pastor televisivo picareta. Boa
parte dos discursos do pastor que são mostrados alertam para uma vindoura “abominação”
mencionada na Bíblia, um mal capaz de trazer o apocalipse. A velha passa horas
diante de seu televisor assistindo ao pastor e fumando cigarros, e não perde
nenhuma oportunidade de convencer o filho a se juntar ao culto. Ele,
entristecido com a vida que a mãe leva, não cede.
Certa noite,
sozinha em casa, a mãe ouve ansiosa o pastor prometer curar o câncer dos espectadores.
Pede que todos os cancerosos a ouvi-lo coloquem as mãos sobre o televisor e
orem junto com ele. Terminada a oração, a mãe sente-lhe os efeitos: é atacada
por uma tosse forte que só para quando ela cospe no chão o tumor que tinha
alojado no pulmão. Joga-o no lixo da cozinha e, milagrosamente curada,
adormece. Mais tarde, o filho retorna do cinema com a namorada e, estranhamente
sem notar o tumor ainda pulsante e claramente visível no lixo, se recolhe. O
tumor, então, rasteja como um ser vivo para a cama do jovem e entra-lhe pela
boca.
A partir de
então, o comportamento do jovem se altera drasticamente, e ele age como que
possuído pela abominação de que falava o pastor televisivo. Cospe fragmentos do
mal que habita seu corpo e os espalha pela casa: embaixo da cama, no armarinho
do banheiro, atrás dos móveis da cozinha. Alimentada com carne humana, a
monstruosidade cresce absurdamente. O jovem mata todos os que encontra pela
frente para alimentar a abominação, inclusive sua própria mãe, ela que se
considerava imune ao mal.
Apesar de
todos os seus defeitos, o longa tem uma carga alegórica digna de nota – além dos
efeitos especiais práticos de encher os olhos, é claro. A abominação é a hipocrisia
materializada, o moralismo de fundo religioso que dana os que estão ao seu alcance.
O filme trabalha de forma única o contraponto entre o velho e o novo, o conservador
e o dinâmico: a fonte de ameaça vem do corpo ressequido de uma religiosa fanática,
contaminando a geração seguinte a ponto de mergulhar a todos na violência
irracional e injustificada. São as frustrações de outrora, arcaicas e
arcaizantes, que ressurgem para assombrar o hoje.