Máquina
de afetos
a
lua não é sabedoria
o
amor também não
ou
a musa
o
gato
a
tosse
nem
a palavra é
sabedoria
são neurotransmissores
nos
encaixes certos
sinapses
sinais
sina
Claudio
Brites
Hiperconexões
– Realidade expandida é uma antologia de proposta incomum: reúne poemas afins
à ficção científica. Como gosta de lembrar Luiz Bras, organizador do volume, o
gênero é definido (ou é reconhecível) pelo tema, e não pela forma. Tematicamente,
assim, se dá o vínculo: como é recorrente nas narrativas de ficção científica,
os poemas compilados tratam das particularidades científicas e tecnológicas
contemporâneas e de seu impacto no homem. Obviamente, há um pequeno conflito
taxionômico no uso da categoria, conflito que, longe de invalidar a proposta, sinaliza
mais uma limitação do termo “ficção científica”.
Há alguns precedentes na literatura
brasileira. Um exemplo conhecido de nossa comunidade de autores e leitores de
ficção científica é André Carneiro, que escreve tanto em verso quanto em prosa
e permite que os dois registros se interpenetrem. Um dos poemas de Espaçopleno (1963) tem, inclusive, o
título “Ficção científica”. Carlos Drummond de Andrade é outro precedente: entre
outros poemas, “A máquina do mundo” merece um estudo cuidadoso que o avalie à
luz dos paradigmas próprios da ficção científica. Augusto dos Anjos é outro
caso a ser pensado, em sua frequente exploração poética de termos e conceitos
científicos.
Hiperconexões
é uma antologia marcadamente contemporânea, disposta a tratar de um homem chamado
de “pós-humano”. O termo, para este leitor, não é dos mais pertinentes na
abordagem da contemporaneidade. Contudo, tratando-se de uma antologia literária,
e não de uma compilação de ensaios teóricos, o importante é que os poemas conseguem
promover no leitor um olhar distanciado acerca de tendências em curso. Tratam
de um homem que perdeu referenciais antigos e abarca os novos com assombro,
desdém ou maravilha. Nesse ponto a antologia evoca a tradição literária da
ficção científica: desde seus primórdios, esta é uma das recorrências temáticas
do gênero.
A lista de autores é ampla e
expressiva: Ademir Assunção, Amarildo Anzolin, Ana Peluso, Andréa Catrópa,
Braulio Tavares, Claudio Brites, Daniel Lopes, Edson Cruz, Elisa Andrade Buzzo,
Fabrício Marques, Fausto Fawcett, Gerusa Leal, Ivan Hegen, Jane Sprenger
Bodnar, Luci Collin, Marcelo Finholdt, Márcia Barbieri, Marco A. de Araújo
Bueno, Mariana Teixeira, Marilia Kubota, Marize Castro, Ninil Gonçalves,
Patricia Chmielewski, Renato Rezende, Rodrigo Garcia Lopes, Ronaldo Bressane,
Sérgio Alcides, Thiago Sá, Valério Oliveira e Victor Del Franco.
Graças à provocativa e coesa proposta
do organizador, o volume alcança uma unidade temática pouco vista. Contribui
nisso a ausência do indicativo de autoria poema a poema – é preciso recorrer ao
índice para saber quem escreveu cada um. Opção nada usual, traz à mente a
diluição do conceito tradicional de autoria, diluição tão presente em tempos de
uma poética acentuadamente apropriativa – ou seja, uma arte que explicitamente
se constrói com base na referência e na colagem de trabalhos alheios. Ainda que
alguns leitores tenham a impressão de que a ausência dos nomes dos autores
abaixo do título de cada poema se deva a um erro editorial, o efeito obtido é
justamente o de apresentar os textos como que misturados em uma espécie de
autoria compartilhada. Os textos se vêem como que em uma hiperconexão.
Não que os poemas não sejam dotados
de particularidades e demandem leituras também particularizadas. Pelo
contrário: tematicamente homogênea, a antologia é heterogênea no que cabe às
diferentes expressões poéticas. Da sobrecarga sensorial emulada por Fausto
Fawcett, criando sentido pelo acúmulo e pelo excesso, à economia expressiva de
Claudio Brites, atenta à multiplicidade que cada pequena palavra pode
despertar, é cumprido o papel de uma antologia: ilustrar diversas facetas de um
objeto comum.
Hiperconexões
constitui, ainda, mais uma etapa no projeto de enriquecer a literatura “mainstream” (aspas enfáticas) com
paradigmas próprios da literatura de gênero – projeto iniciado pelo antecessor de Luiz Bras, Nelson de Oliveira. O projeto vinha sendo executado com sucesso
na prosa, e agora chegou a vez do verso. Isso pode ser observado já na lista
dos autores da antologia, composta tanto por autores conhecidos por sua ficção
científica quanto por autores à primeira vista estranhos a ela. Hiperconexões pode ser compreendido
assim: como uma ponte ou, melhor, uma conexão entre mundos que não devem
permanecer à parte.